quinta-feira, 3 de junho de 2010

Gardenal com Red Bull e dois litros de bergamota


Apesar da chuva que desabou às seis e meia da manhã, eu e o Beto Berns resolvemos honrar o compromisso assumido com a felicidade e fomos fazer o pedal Campinas-Santo Amaro-São Pedro-Antônio Carlos-Biguaçu-Campinas. Não havia como adiar, porque às cinco e meia eu já havia devorado um prato de macarrão e logo em seguida tomado meu “Gardenal com Red Bull”, receita experimentada e aprovada durante a viagem a Urubici.

Encontrei com o Beto na frente da Ciclo Vil. O João apareceu sem bike e ao olhar para o céu, amarelou, porque uma garoa fininha investia contra nossos capacetes. Como não houvesse jeito de demover João da ideia de voltar para a cama, partimos. Eram oito e vinte. Esquerda, direita e o Beto encontrou com o George vindo da balada! “E aí George, vamos fazer um pedal?” “Não, não”. Pegamos a Marginal 101 sem garoa alguma. O céu, às vezes, abria uns buracos azuis, mas logo em seguida fechava-se com grandes flocos de nuvem cinza. Tocamos direto até o primeiro posto da BR 282, estrada que leva à Serra Catarinense. Ali fomos abordados por um senhor que nos contou que certa vez se perdeu no caminho que estávamos fazendo, pois ele se guiou por uma árvore, que, “é provável”, cresceu e deu para passear por aí. Concluímos, então, que árvore não é um marco seguro para se guiar. O bom mesmo é ter um mapa.

Beto tem o mapa de nosso pedal na cabeça, mas eu comecei a ficar preocupado com a integridade cartográfica quando saímos do posto, pois uma forte chuva nos pegou de jeito. Como eu falo o tempo todo, o risco é d’eu engolir a água que o pneu dianteiro joga na minha boca, o que pode me render uma leptospirose, virose ou outra “ose” qualquer. Eu pensava nessas coisas quando o Beto disse que pegaríamos à direita logo, em direção a São Pedro de Alcântara. Eu não via hora de sair da 282 porque chovia muito e o trânsito era intenso. Eu estava sem sinaleira e a do Beto é do tamanho de uma luz de alarme. Isso não dá visibilidade alguma para os motoristas, que passavam por nós acima de 80 km/h com o vidro do carro embaçado.

Dobramos à direita tão esperada com a chuva nos castigando. Mas agora o pedal se tornara rural, repleto de pasto, gado, casas bucólicas e riachos. Aqui deixamos de aspirar fumaça de óleo diesel e passamos a encher os pulmões com o aroma maravilhoso de bosta de vaca. Mais de uma hora de pedal até aqui e nenhum morro nem estrada de chão. Só asfalto. De repente, numa pequena descida, algo divino aconteceu: um pé de bergamota completamente carregado na beira da estrada! Eu sou louco por bergamota!!! Forramos nossos bolsos dessas delícias e desenvolvemos duas técnicas bastante interessantes: descascar bergamota pedalando, e comer e respirar ao mesmo tempo. A primeira diz respeito à habilidade de pedalar sem as duas mãos. A segunda exige muita coordenação, pois ao mínimo vacilo um gomo inteiro pode ir parar no fundo dos pulmões.

Íamos tranquilos entre pulmões e bergamotas quando o asfalto acabou. E como se não bastasse toda lama, os morros começaram a surgir. Tímidos, no início. Mas à medida que pedalávamos outros morros foram surgindo, anacondas ocres ziguezagueando nas alturas. Beto teve que descer algumas vezes porque pedalava clipado e a roda traseira derrapava constantemente. A minha “Cruel” é desclipada e, caso derrapasse, bastava botar o pé no chão. Nesse ponto descobri que o barro é um excelente mecânico, porque regulou o câmbio da “Cruel”, que agora não escapava mais. A areia esmerilhou a corrente nova, acontecendo o casamento tão esperado entre o “senhor cassete” e a “senhora corrente”.

Dessa união nasceu um montanhista! Eu pedalava a “Cruel” com desenvoltura, trocando com precisão as marchas. Mesmo num terreno tão pesado, cuja fórmula fora elaborada com muita cola, mil argentinos pegajosos e quinhentos tonéis de mocotó, consegui zerar todo trecho. Eu e o Beto paramos diante da propriedade de um senhor depravado, que atende pelo curioso nome de Paulo Fuck! Talvez ele tenha escrito seu nome numa plaquinha para impor respeito, ou para dizer que ele “é o cara”, mas como a sua propriedade é de difícil acesso, acho que ele se fuck todo.

Após meia hora de subida, o prêmio: Beto Downhill despencou morro abaixo, em direção a São Pedro. Eu disse: “Cruel, siga aquele cara!” Mas a “Cruel” precisa de um par de “botas novas” para andar na lama. No primeiro atoleiro quase perdi o controle e por pouco não fui ao chão. Apertei os freios, que não respondiam por causa da lama. Desgovernado, a tensão foi enrijecendo toda musculatura devido a doses poderosas de adrenalina! Eu só pensava em não sair do trilho. E enquanto Beto Donwill mostrava toda técnica ninja em cima da sua Specialized, um cometa de duas rodas derrapava nas alturas e cuspia lama!

Quando o declive terminou, pedalamos poucos quilômetros até encontrarmos o asfalto novamente. Dobramos à esquerda e seguimos em direção ao centro de São Pedro, um asfalto lisinho, uma maravilha. Mas antes de alcançarmos a praça, o Beto disse que eu deveria dobrar à direita, deixar aquele asfalto fabuloso e encarar uma tripa de lama que nos levaria a Antônio Carlos. Esse trecho é muito bom de pedalar, embora tenha algumas subidas. Mas assim que elas terminam o sujeito se depara com uma montanha que não acaba mais de descer! Beto Downhill fica entusiasmado e abre uns trezentos metros de vantagem. Ele desce num puro sangue adestrado. Eu venho trotando num jegue que esperneia o tempo todo, escoiceia no ar, empina, manca, resvala, acaba com minha coluna! Não sei se o poeta Drummond passou por aqui, mas há muita pedra no meio do caminho. Eu contei 1.789.583.564 buracos!

Encontrei Beto Downhill no pé do morro olhando uma propriedade fantástica: um casarão antigo com um grande açude. No meio desse açude foi construído um “quiosque”, cujo acesso é feito por um trapiche de madeira. Por trás, os morros verdejantes namoram entre si numa troca de olhares e suspiros fotossintéticos. Maravilhados com o visual, chupamos as últimas bergamotas.

Daí até o centro de Antônio Carlos foi um nada. Entramos na propriedade do pai do Beto para nos abastecermos de água e lavar nossas bikes, que estavam imundas. Apertamos o ritmo até a entrada de Biguaçu, onde nos alongamos por uns cinco minutos. O sol punha seus dedos incandescentes sobre nossos ombros, consagrando-nos cavaleiros celestiais.

Aquecidos pela heliobiologia do acaso, entramos na perigosa marginal da BR 101 até o Shopping Itaguaçu. Esquerda, direita, esquerda e chegamos de volta ao começo. Fim de papo. No super ciclocomputador do Beto, a distância e o tempo do pedal: 80 km em 5h. O trajeto exige boa resistência.

Cheguei em casa encharcado da cueca até a mais humilde molécula! Levei mais de dez minutos só para tirar a areia das panturrilhas. Entupi o encanamento do tanque de lavar roupas da minha mãe, que, nervosa, xingou a si própria: “Seu filho da...” As mães também têm segredos. O Gardenal com Red Bull não me deixou dormir até agora. Por isso, vou postar esse relato no blog nesse instante.

Prof. Charles.

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