Domingo, dois de maio. O sol estala seus chicotes de raios. Para não ter meu couro rasgado, exagero no protetor solar, o que me vale a alcunha de “fantasma da bicicleta”. Há uma excitação natural nos dez ciclistas que posam para as fotos antes da saída em frente a Ciclo Vil, pois o destino é a famosa praia de nudismo, Pedras Altas.
Marquinho, Joãozinho, Nandinho, Delfinzinho, Charlinho, Ricardinho, Aninha, Terezinha, Simarinha e Raquelzinha já estão serpenteando pelas ruas do Kobrasol. A luz do fim do túnel que se agacha sob a BR 101 é a esperança nua da manhã. O sol nos teria convencido de que o chão era feito apenas de pétalas envernizadas, se Tereza não tivesse encontrado um espinho varão e decidido. Ao ser penetrada pela fúria pontiaguda do vegetal desconhecido, a maciez do pneu traseiro da bicicleta de nossa amiga teve o hímen rompido impiedosamente. Solícitos, Nando e eu trabalhamos agora na reconstituição da nobre membrana a que os especialistas chamam de câmara.
Com a promessa de que o cheque será pago com cervejas, Tereza volta a pedalar. As dez bicicletas borboleteiam entre trevos, acostamentos e desvios. Entre conversas, confissões e cantorias, vamos florescendo pelo caminho. Aqui, sobre guidons e selins, uma “alegria de ir” invade nossos corações, porque quem veste uma bicicleta goza de felicidade infantil. Sé é certo que as crianças existem para que não se esqueça o riso, mas acertado está que os pedais existem para girar o mundo: “E o menino com o brilho do sol na menina dos olhos sorri e estende a mão, entregando seu coração...”
Com a música de Gonzaguinha tocando dentro de mim, assumo o leme do galeão dos sonhos que flutua sobre a ondulação do asfalto, ao sabor de suas velas laranja. Se eu tivesse cabelo, na certa eles tremulariam ao vento. Como só tenho penugens, elas se arrepiam o tempo todo sob o capacete. Por isso sinto um ouriço arranhar minha cabeça quando João inventa de furar o pedágio de Palhoça. Um cabo de aço impede que os ciclistas passem entre as pequenas colunas de concreto. João freia em cima e evita a queda. Segundos depois surge Aninha, que escapa do cabo de aço, mas não consegue evitar a colisão com o cone preto e amarelo (chapéu da bruxa do asfalto?!). Aninha não cai, mas o susto é grande para a família de ouriços que se espremem no alto da minha cabeça.
Fernando, que havia se juntado ao grupo nas proximidades do Giassi de Palhoça, alerta para o perigo da travessia da BR 101. Por dentro, estamos indo à Praia de Fora. Por fora, o mar nos namora em silêncio. O namoro só é interrompido quando Marquinho nos leva à casa de seus pais. Enquanto as meninas dão satisfação às urgências do baixo ventre, o que é urgente aos meninos é o registro da parada. E a parada é a seguinte: tirar fotografias.
Agora, sacolejar sobre os paralelepípedos de Enseada de Brito alegra nossas costelas. Na pequena praça, os sete homens do grupo posam para o cartão postal dos Sete Anões, o que diverte as quatro Brancas de Neve que nos acompanham. Até aqui nosso pedal foi um conto de fadas. O que pode haver além da lenda?
Último trecho: trilha de Pedras Altas. Simara dá um show de técnica e agilidade. Ricardo vence todos os morros. Eu e Tereza conversamos durante as retas e as descidas, mas na subida ela me pede para fechar a matraca. Deus, por que eu falo tanto?! Delfim parece um menino. Ele brinca nos morros como os golfinhos brincam nas ondas. Aninha combina as marchas e encara todas as subidas. Raquel fica ofegante, mas não desiste. Nando, Marquinho, João e Fernando se divertem com seus poderosos músculos, pois não precisam resgatar ninguém, apenas esperar uns minutinhos.
Pronto, chegamos! Uma placa avisa que para descer à praia são três reais por pessoa. Pessoa alguma do grupo se arrisca. Só João Curioso desce a trilha que dá acesso ao mar. Porém, em menos de um minuto ele está de volta assustado, dizendo que tinha um lobisomem pelado no bar e um leão marinho muito à vontade saindo da água. Sereia que é bom, nada! Sorrimos e demos meia-volta. Apenas Ricardo deu uma volta inteira, procurando descansar uns segundos a mais.
A trilha das Pedras Altas é traiçoeira! Raquel tem uma bicicleta nova. A trilha tem pedras soltas! Raquel tem uma bicicleta nova. A trilha escorrega, sobe, desce e faz curvas. Raquel tem uma bicicleta nova. A trilha tem inúmeras valas cavadas pelas últimas chuvas... Raquel tem uma bicicleta VELHA! Não vi a queda, apenas uma nuvem de poeira que envolvia a horta. Raquel com sua camisa cenoura mostrava o sangue beterraba no joelho. A bicicleta riscada tripudiava irônica, feito um cavalo branco quando refuga o salto e lança a amazona primeiro ao colchão de ar, depois às pedras do chão.
No Armazém de Enseada de Brito, enquanto Raquel retira as britas do cabelo crespo, tomo duas cervejas de garrafa e derrubo um X-Galináceo qualquer. Uns comem frutas, outros bolachas. Marquinho não bebe em serviço. Nando e Ricardo aceitam um copo. Gasto alguns minutos admirando as fotos de várias pescarias que o dono expõe na parede. Meu reino por um peixe frito!
De volta às bicicletas, todos estão hidratados, menos eu. A atenção prestada às cervejas não foi a mesma dada às caramanholas. Passo sede até encontrar um mercadinho aberto. Às margens da BR, Nando sente falta do seu celular. Raquel liga e alguém atende explicando que o “pai de santo” de Nando está no lugar onde tomei as duas cervejas, há dez quilômetros dali. João e Aninha haviam se despencado a toda velocidade minutos antes, porque ela tinha compromisso e ele não a deixou voltar só. Marquinho decide acompanhar Nando, numa socadeira daquelas!
Fernando assume o posto de capitão e puxa o grupo no trecho mais perigoso do passeio. De repente, ouve-se uma freada fortíssima atrás do grupo. Susto. Suspense... O que se passa só pode ser narrado em slow motion: Fernando ouve os pneus riscarem o asfalto. Ele puxa a bicicleta para o canto da pista. Quando o pneu dianteiro atinge o meio fio, a bicicleta gira no espaço, levando com ela o homem pássaro. O beija-flor para alguns segundos no ar, dá um triplo carpado e cai em pé, procurando o acidente que não aconteceu. As pernas dele tremem, mas não desapontam. “Voar é do homem!” Fernando se despede nas proximidades de Palhoça.
Recomposta, nossa equipe retoma os pedais. Ricardo sente o peso dos quilômetros. Simara, Raquel, Delfim e Tereza seguem adiante. Eu assumo o posto de “fechar o grupo”. Exausto, Ricardo senta num banco de ponto de ônibus e diz para eu seguir sozinho. Mas eu quero que ele complete todo o trajeto e o animo, pois estamos muito perto do trevo de Forquilhinhas. Então, ele se levanta para o último trecho, mas o pneu está vazio. Bomba, câmara, ação! O desgaste de Ricardo é tão grande que nem a bomba tem fôlego suficiente para inflar o pneu. Com extremo sacrifício, entramos no Kobrasol. Quando meu amigo parou na frente do Lar dos Velhinhos de Zulma, pensei que ele queria me internar de tão ranzinza que fui durante o caminho, retrucando toda vez que ele pensava em desistir. Despedimo-nos felizes por rodar mais de setenta quilômetros sobre um terreno misto e irregular em que asfalto, terra, lama, brita, poeira, costeleta, paralelepípedo, subidas e descidas destruíram nossa musculatura.
À noite, João, Tereza, Raquel, Nando e eu fomos ao Bar das Pedras, em Itaguaçu, para uma alegria de cervejas e aperitivos. Nando chamou pra uma viola nas altas pedras que por ali se instalaram há milhares de anos, à beira-mar. Fomos todos, menos Raquel, pois o sono a dominava e ela preferiu ir embora. E assim, na madrugada do dia três, quatro ciclistas viram as pedras de Itaguaçu cantarem e dançarem o reggae da Jamaica: “Is this love, is this love, is this love, is this love that I’m feeling?”
Prof. Charles.
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