quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vaga-lumes vermelhos


Todos sabem que o dia primeiro de abril é consagrado à mentira. Há muitas explicações para tal mania. A que parece ser mais convincente alega que essa brincadeira teve início na França após a promulgação do “Calendário Gregoriano”, em 24 de fevereiro de 1582. Antes da adoção de tal calendário, a Europa seguia o “Calendário Juliano”, que reservava o dia 25 de março para o Réveillon de uma semana de duração, terminando, assim, no dia primeiro de abril, início da primavera européia. O rei da França, Carlos IX, ao implantar o novo calendário em seu país deslocou o Ano Novo para o dia primeiro de janeiro. Muita gente não gostou da mudança e continuou a comemorar o Ano Novo no dia primeiro de abril, como rezava a tradição. As pessoas que adotaram a nova data, legitimada pelo Papa Gregório XIII (daí o nome: Calendário Gregoriano) começaram a ironizar as que teimavam em comemorar o início do ano na data antiga. A brincadeira consistia em enviar, por exemplo, convites para festas falsas de casamento, velórios, aniversários, eventos jamais realizados. Por isso, o dia primeiro de abril se espalhou pelo mundo como o dia da mentira.

Pois muito bem. Hoje são dois de abril e juro narrar com veracidade o “Tour Floripa-Angelina: 54 Km de pura emoção!”, que ocorreu no dia primeiro de abril e não foi mentira! Sou péssimo para gravar nomes e fisionomias. Por isso, sempre que eu escrever “um integrante”, “um ciclista” ou algo semelhante é porque não sei ou esqueci o nome do “vaga-lume vermelho”.


Tour Floripa-Angelina: 54 Km de pura emoção!


São nove horas da noite e há uma grande concentração de ciclistas em frente ao Cicles Hoffmann. O organizador do evento, Gean, agradece a presença dos mais de cento e trinta participantes. Os ciclistas estão divididos em três níveis: “Duas Rodas”, “Uma Roda” e “Meia Roda”. Os Duas Rodas ostentam super bikes de marcas famosas, verdadeiras máquinas de devorar distância. São bicicletas que respondem com precisão e agilidade aos poderosos músculos dos atletas. Atrás dos Duas Rodas pedala o grupo intermediário, os Uma Roda. São ciclistas com equipamentos mais modestos, com preparo físico razoável, mas muito determinados. Alguns integrantes desse grupo chegam a andar junto ao primeiro pelotão por algum tempo, mesmo nas subidas. Bem mais atrás está o grupo em que me insiro, os “Meia Roda”. Trata-se da terceira divisão do Mountain Bike. Aqui as bikes variam entre boas e ruins. O que não varia é a lesma que pedala lenta e incessantemente até o fim do caminho. Os Meia Roda não conversam sobre o tempo do percurso, meta, estratégia, velocidade, sprint final. Isso é papo da elite. O assunto em pauta é sempre a dor: nos joelhos, nas costas, nas nádegas, no pescoço... e quando se referem ao percurso é para perguntar quanto falta de sofrimento. Enquanto os ciclistas de elite trocam o nome de equipamentos modernos e eficientes, os do último escalão trocam o nome de médicos: “Olha, eu conheço um ortopedista, o Dr. Patela, que fez uma cirurgia tão boa no joelho da minha avó que ela agora participa do Tour de France!”

Agora, o Gean Hoffmann pede que os ciclistas se alinhem para a largada. Todos fazem em voz alta a contagem regressiva de dez ao “já!” É emocionante!!! Como uma nuvem de vaga-lumes vermelhos, as lanternas traseiras das mountain bikes invadem as ruas. Contagiadas pelo voo noturno, as almas dos ciclistas descobrem que o sentido da vida consiste em compartilhar momentos de ternura e simplicidade, que vão desde o espetáculo fascinante dos piscas-piscas vermelhos até as conversas animadas e engraçadas que surgem pelo caminho. Enquanto a alegria se desenrola na estrada é possível sentir que a bicicleta é o caminho mais curto entre a vida e a liberdade.

Senhores absolutos do trânsito, acabamos de entrar na avenida Presidente Kennedy, assessorados por um carro de apoio e pelos batedores da Polícia Militar. Há um carro na frente do pelotão tirando muitas fotos. Nesse instante, apenas os Duas Rodas são clicados, pois já dominam o pelotão da frente. Até a subida da marginal da BR 101 consigo acompanhá-los, o que significa que eles estão apenas passeando. Na descida, antes do trevo de Forquilhinhas, é possível avistar um oásis no asfalto. Enquanto vários bikers sobem a calçada para não molharem suas rodas, um ciclista alheio a tudo e a todos resolve fazer um downhill e mostrar pra galera que ele é parente de Noé, o cara da arca, e não tem medo de lama. Ao passar pela grande poça d’água, cuja consistência merecia, no mínimo, respeito, o cara se estabacou no chão! Suspense... num instante tudo são destroços: farol pendurado, ciclocomputador arremessado, joelho e cotovelo esfolados. A julgar pelo seu equipamento e pela manobra audaciosa, o cara é Uma Roda. Ele logo se recompõe e recomeça a pedalar com a bicicleta avariada.

Sem maiores contratempos chegamos ao posto de gasolina próximo à UNIVALE. Essa parada foi para reagrupar os Meia, Uma e Duas Rodas. Enquanto os super atletas se preparam para imprimir, agora sim, um ritmo forte, os Meia Roda fazem alongamento e procuram desesperadamente pelo carro de apoio, metáfora da ambulância para os ateus e da Divina Providência para os religiosos.

Mau começou a nova largada e a nuvem compacta dos vaga-lumes vermelhos deu a última grande revoada. A dança do acasalamento havia acabado. Agora era cada um pra si. Quem pode, pó, quem não pode, pedra! Eu, o Cristian da Dígitros e o speed Ricardo, ex-atleta que integrou a equipe do Della Giustina no passado, pedalamos vários quilômetros juntos. Mas na subida amaldiçoávamos tanto o prefeito de São Pedro quanto o de Angelina pela ausência de teleféricos. A falta dessa infra-estrutura nos distanciava dos ciclistas de ponta e dos intermediários. Sem teleféricos, o jeito era parar de reclamar e pedalar, cada um no seu ritmo.

A cinco quilômetros de São Pedro encontro um trecho muito bom de asfalto. Pedalo sozinho na escuridão e não faço ideia de quantos ciclistas me passaram e de quantos ainda me passarão. Estou me sentindo muito bem e muito feliz por estar participando do evento. Despenco do morro abaixo a 45 Km/h. A temperatura está excelente e não me sinto cansado. Resolvo, então, abusar do meu condicionamento físico e imprimir um bom ritmo, certo de que o ponto de hidratação está próximo. Aos poucos vou alcançando e ultrapassando vários integrantes do Uma Roda. Sinto-me o Lance Armstrong nos Alpes Suíços, estraçalhando as pernas de meus adversários! Finalmente, alcanço um ciclista que pedala muito bem, mas que estava devagar, esperando um amigo que está mais atrás. Não demorou muito para que o amigo dele chegasse e grudasse em sua roda traseira. Eu vou na balada. Estamos pedalando a 35 Km/h na reta, o que pra mim é um feito inédito! O fato é que estou no vácuo, respeitando meu batimento cardíaco e controlando minha respiração. Como numa corrida de verdade, inclinávamos o corpo para frente a fim de cortar o vento e não perder velocidade. O passista era consistente e mesmo nas pequenas subidas daquele trecho ele não aliviava. Nos quinhentos metros finais que levam à praça não resisti a tentação e ultrapassei os dois num sprint sensacional! Quando parei de pedalar, São Pedro de Alcântara era a maior roda gigante que eu já vi! Todo o chão girava sob minhas pernas trêmulas e eu pensei: “Agora eu vou enfartar!” Encomendei meu corpo a Nossa Senhora de Lourdes e bebi um litro e meio de Gatorade de uma só vez!

Minha performance deve-se muito ao trabalho do mecânico da Ciclo Vil, que na véspera do tour fez um verdadeiro milagre na Epic que estou pedalando. Quando saí da loja, senti que tinha uma bicicleta na mão, tanto pelos refinados ajustes que foram feitos, quanto pela alta competência do serviço prestado. Depois da revisão a bicicleta ganhou muito em estabilidade e desempenho, passando a responder bem no asfalto, no barro e no paralelepípedo. Dos freios ao câmbio, dos raios ao cubo, dos pedais ao guidão, tudo passou a funcionar de forma segura e eficiente. Outro item que me deu bastante segurança foi o farol CATEYE HL-EL320, Made in Japan! Eu simplesmente vejo tudo a minha frente! Sou o sol da meia noite!

Recobrado o fôlego, estou partindo para Angelina acompanhado dos amigos Cristian e Luciano. Mas um incidente nos detém por um instante na praça de São Pedro: num exibicionismo descabido, um motoqueiro resolve empinar sua CG na frente da multidão, levando consigo a namorada adolescente na garupa. Ele se desequilibra, perde o controle e cai. A namorada está deitada na estrada, sem forças para levantar. Nervoso, ele a pega no colo e a leva para a calçada. Não ficamos para ver a gravidade dos ferimentos, mas foi possível ouvir os miolos da menina pensado: “O príncipe ainda virá. Esse motoqueiro idiota que tomei por namorado é apenas o cavalo!

Agora estamos girando os pedais em direção à montanha de barro, pedra e pó. Uma multidão de pessoas faz o trajeto a pé. Também os carros dividem a estrada, de forma que temos quatro veículos se acotovelando ao longo da romaria: o “Expresso Canelinha”, os automóveis, as CGs e as bicicletas. A subida é longa, mas quem sobe a montanha sente-se revigorado e, de certa forma, abençoado pela força da natureza, que nos espreita curiosa da copa das árvores. No “barzinho”, que dista aproximadamente 11 Km de Angelina, meu amigo Cristian é forçado a parar devido a fortes dores no joelho. O Luciano, mesmo com tendinite nos joelhos, sumiu nas alturas da montanha. Por isso estou escalando sozinho entre os romeiros. É um momento de superação. Não vou desistir!
Com a musculatura aquecida, a pedalada rende muito bem na subida, mas o ritmo é lento. E tome “vovozinha”! Reencontro Luciano sob a luz de um poste fazendo alongamento. Acho a idéia boa e começo a me alongar também. Nessa hora, o João, do Pedal Continente, passa pedalando forte, levando consigo outros integrantes do grupo. Subo imediatamente em minha bicicleta, na esperança de não ter que pedalar mais sozinho. No alto da montanha gelada encontro João, a namorada Samara e outros integrantes do grupo. Aos poucos, mais pessoas vão chegando: Carol, Rinaldo, mais uma menina que pedala muito bem (acho que é prima do João) e mais uma galera! O frio da serra esfria rapidamente nossos músculos. Depois de uns vinte minutos de espera, o grupo estava reunido novamente. Rinaldo puxa o grupo na descida, cumprimentando todas as pessoas que encontra pelo caminho.

Estamos agora na última subida. A situação é a seguinte: meus músculos estão exaustos e frios devido a parada no alto da montanha. Temendo uma câimbra decido caminhar um pouco em busca de um melhor aquecimento. Caminho por dez minutos apenas e já me sinto aquecido para pedalar outra vez. De repente, como um verdadeiro milagre, surge a minha frente o caminhão de apoio da Ciclo Vil. No ponto mais crítico da subida, agarro-me a ele com devoção por uns 200 metros. A Carol segue firme “puxando” o caminhão. E enquanto ela detona na subida penso no quanto as meninas que encararam os 54 Km são destemidas.

Carol, Samara e a “prima do João” (depois me digam o nome dela) obtêm um excelente desempenho! Elas não se queixam de coisa alguma. Essas meninas são tão guerreiras quanto as lendárias amazonas. Fortes e destemidas, encaram o desafio com graça e naturalidade. Elas deixaram na poeira muitos ciclistas que duvidaram que elas pudessem pedalar até o final. Fiquei bastante orgulhoso de fazer parte do grupo que elas pedalam. Aliás, tanto o Pedal Continente quanto o Floripa Bikers têm revelado mulheres fortes, velozes e muito corajosas!

A última montanha é vencida. Agora, basta despencar morro abaixo até Angelina. Na descida, kamikazes locais roubam a cena: montados em verdadeiros cavalos de aço, descem mais rápido que o corisco. Trata-se de bicicletas simples, mas muito resistentes, como a Barra Forte Circular. Imprudentes, chegam atingir mais de 40 Km/h desprovidos de buzinas ou faróis, um risco para qualquer coisa morta ou viva que ouse cruzar o caminho.

Desço lentamente, apreciando a cidade de colonização alemã. Milhares de devotos ocupam as ruas da cidade. Na gruta da santa, uma multidão agradece e pede proteção a Nossa Senhora de Lourdes. Exausto, penso num banho relaxante com sauna e hidromassagem. Amarro a bicicleta no caminhão e entro no vestiário do ginásio. Assim que levanto a tampa da privada fico sabendo que “matricularam o Robinho na natação” e dou descarga. Os três banheiros não têm portas e os chuveiros parecem querer eletrocutar o primeiro banhista metido a besta. O motorista da Van avisa que já são três horas e que o ginásio será fechado! Desespero! Troco rapidamente de roupa e entro todo suado na Van, que deveria sair pontualmente também às três. Mas o João Waldemiro está na fila da água santa da bica e devemos esperá-lo. Quarenta minutos depois ele chega contente por ter conseguido meio litro do líquido santo.

Às quatro e meia da manhã estamos de volta ao Cicles Hoffmann com nossas bikes imundas! Pedalo mais um quilômetro até chegar em casa. Debaixo do chuveiro, Angelina se despede mim e vai repousar na escuridão do ralo do banheiro. Deitado na cama relembro a imagem poética dos vaga-lumes vermelhos que voam para Angelina uma vez por ano. Da pedagogia desse voo noturno fica a lição de que na vida, quando voamos juntos, renova-se a esperança de um mundo melhor, onde valores como amizade, respeito e compreensão ganham novas cores. Também aprendi que amigos são como os vaga-lumes, seres que brilham quando tudo escurece.

Antes do “Tour Floripa-Angelina: 54 Km de pura emoção!”, eu não sabia orientar as almas aflitas que me pediam conselho sobre casar ou comprar uma bicicleta. Agora estou certo de que posso ajudar na resolução do problema: comprar duas bicicletas é a melhor solução! Afinal de contas, amar é pedalar juntos na doçura do mês de abril, ou no pôr-do-sol de qualquer estação!!!


Um grande abraço do prof. Charles.

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